Recentemente, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) publicaram os termos de diversos acordos de leniência celebrados, mantendo, contudo, sob sigilo diferentes passagens. De pronto, alguns advogados vieram a público para criticar a decisão das duas pastas ministeriais de tarjar vários trechos dos acordos firmados sob o argumento de que tal iniciativa ofende o princípio da publicidade que deve orientar a administração pública, ao mesmo tempo que observaram tratar-se a manutenção do sigilo de partes dos acordos fonte de enorme insegurança jurídica porque não permite uma compreensão dos critérios adotados, especialmente para a quantificação da reparação dos danos verificados.
Os argumentos impressionam. Todavia, uma leitura mais atenta aponta que não são suficientes para demonstrar o suposto desacerto dos órgãos governamentais citados.
Não se nega que a publicidade é norma fundante da administração pública, ao lado da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. A Constituição Federal assim o afirma no seu artigo 37, caput. Sem embargo, a primazia da ampla publicidade cede lugar quando o interesse público assim o exigir e é desse interesse que se está a cuidar quando se resolve manter sob sigilo trechos dos acordos celebrados.
É que os acordos de leniência, como sabido, reúnem vários objetivos, permitindo, a um só tempo, que as empresas que tenham cometido, por seus empregados e executivos, atos ilícitos de corrupção, possam ressarcir o erário, fornecer informações e documentos que aparelhem novas investigações e implantar programas de integridade que orientem o futuro de suas ações.
Salta aos olhos que a divulgação precipitada dessas informações mais danos causará na medida em que, potencialmente, poderá comprometer aquelas investigações e mesmo inviabiliza-las. Diante da evidente antinomia, há de prevalecer as exigências do interesse público, que, indubitavelmente, se afiguram de maior densidade jurídica no caso em questão.
Aliás, não é outra a própria solução legal para o tema. Com efeito, o artigo 16, parágrafo sexto da Lei nº 12.846/2013, diz que a proposta de acordo de leniência se tornará publica após a efetivação do respectivo acordo, para ressalvar, no entanto, que a manutenção do sigilo poderá ocorrer no interesse das investigações.
Igual tratamento foi dispensado aos acordos de colaboração premiada pela Lei nº 12.850/2013, notadamente seu artigo 7º, parágrafo 3º que expressamente estipula que eles somente deixarão de ser sigilosos após o recebimento da denúncia, isto é, após o Ministério Público formalizar a acusação dos investigados à Justiça.
Quanto ao segundo argumento, a pretensa insegurança jurídica decorrente do sigilo imposto a partes dos acordos celebrados, aqui é preciso reconhecer que os contratos de leniência ainda padecem dessa enorme dificuldade, a insegurança jurídica, mas não pelas razões referidas. Com efeito, Ministério Público, por previsão constitucional, Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) e Advocacia-Geral da União (AGU), em decorrência de previsão legal (Lei 12.846/13), Tribunal de Contas da União, em virtude de um autoconferimento de competência (instrumento este que não pode de modo algum subjugar tanto a Constituição Federal quanto à legislação vigente) que o transforma, por mais absurdo que possa significar, em câmara revisora da atividade administrativa do Poder Executivo, todos estão, pelo menos no discurso formal, buscando enfrentar o tema da moralidade administrativa.
Na medida, contudo, em que lhes falta uma diretriz comum, expressão de uma centralidade de poder, agem, não raro, com enorme carência de racionalidade, retirando do acordo de leniência toda a sua potencialidade transformadora do status quo.
A par dessa disputa, a insegurança jurídica nasce ainda do fato de o Estado que celebra o acordo ser o mesmo Estado que ainda insiste em não o reconhecer, o que, apropriadamente, já foi denominado como “esquizofrênico”.
Na prática, o que se tem observado é um enorme embaraço e desestímulo à celebração dos acordos e mesmo o oferecimento de inúmeros obstáculos à própria efetividade dos acordos já celebrados.
As consequências são visíveis. As investigações restam comprometidas, novas práticas, que poderiam estar orientadas por programas de integridade monitorados por órgãos responsáveis não se implantam e, por fim, o ressarcimento dos cofres públicos não se concretiza.
Dessa forma, a insegurança jurídica produzida francamente conspira contra a moralização que os acordos de leniência deveriam viabilizar se, antes de mais nada, fossem compreendidos como instrumentos de política de Estado.
Evidente, por conseguinte, que a incerteza e insegurança são expressão de um problema verdadeiro por detrás dos acordos de leniência, mas atribuir a responsabilidade das mesmas ao necessário e excepcional sigilo que, por prazo determinado, eventualmente deverá guarnecer as informações disponibilizadas pelas empresas contratantes não é a compreensão mais correta.
No mais, hoje já há critérios objetivos norteando a quantificação da reparação pecuniária, critérios absolutamente públicos que, aliás, estão previstos na própria regulamentação da Lei nº 12.846/2013, o que, reconhecidamente, confere objetividade e segurança ao processo de negociação e ao próprio acordo em si.