A Coordenação Geral de Recuperação de Créditos da Procuradoria da Fazenda Nacional (CGR/PGFN) exarou recentemente a Nota Técnica n° 03/2018. Utilizando técnicas de cruzamento de dados contidos em diferentes sistemas, foi feito um mapeamento das empresas que tenham débitos de origem não previdenciária inscritos em dívida ativa da União.
Utilizando-se como corte o fato de a empresa constar, em seu nome social, a expressão “em recuperação judicial” ou assemelhada, e utilizando-se apenas o sistema que gerencia as inscrições em dívida ativa de origem não-previdenciária, chegou-se à conclusão de que dos mais de 1.4 trilhão de Reais inscritos em dívida ativa, 1,58% são débitos de empresas em Recuperação Judicial. Todavia, dos quase 2.5 milhões de devedores pessoas jurídicas, estão em recuperação judicial apenas 0,03%.
Ou seja, proporcionalmente, as pessoas em Recuperação Judicial concentram cerca de 58 vezes mais débitos, que pessoas em outras situações. Além disso, tais débitos estão concentrados: 80% dos débitos estão com 25% das pessoas em Recuperação.
E, do total dos débitos inscritos em dívida ativa de origem não previdenciária, quase três quartos estão em situação que impede a obtenção de Certidão Positiva com Efeitos de Negativa (CPEN), a qual substitui a Certidão Negativas de Débitos (CND), nos termos do artigo 206 do Código Tributário Nacional (CTN). Tal Certidão é especialmente importante para quem está em Recuperação Judicial, porque é requisito para a homologação do Plano de Recuperação Judicial, nos termos do art. 57 da Lei n° 11.101/05 – Lei de Falências e Recuperações Judiciais.
Também chama a atenção que 80% do que foi inscrito em dívida ativa se refere aos períodos de 2007 a 2017, ou seja, após a edição da atual Lei, acentuando-se o processo de acumulação de dívidas nos anos de 2015 e 2016, que respondem por 20% de todo o total devido pelas pessoas nessa situação. Coincidentemente, ou não, os anos de 2015 e 2016 foram os anos de ápice de uma série de entendimentos jurisprudenciais benéficos às empresas em Recuperação Judicial2. E, se ainda não bastasse essa coincidência, o ano de 2015 foi, segundo a Nota, bastante profícuo na movimentação (entrada e saída) de administradores nas empresas em Recuperação Judicial.
A análise da Receita Bruta das empresas em Recuperação Judicial demonstrou uma queda na Receita, em função do tempo. Ou seja, mesmo com a Recuperação, em geral, não tem havido o prometido reerguimento da atividade empresarial. O que tem havido é o ingresso de mais dívidas. Outras métricas, como o de empresas em Recuperação com empregados registrados, o arrecadação destas com DARF ou GPS, também apresentam decréscimo.
Já o cotejo do número de inscrições versus idade de cada inscrição trouxe quatro perfis de devedores em Recuperação Judicial.
Um primeiro grupo apontado pela referida Nota tem inscrições antigas (há mais de dez anos) e novas (menos de cinco anos). Ou seja, não pagam suas dívidas antigas, e continuam a fazer novas dívidas. Para tal grupo, não pagar os tributos (antigos e correntes) é uma forma de financiar a própria atividade empresarial. Aqui, a Recuperação Judicial é bastante vantajosa, visto que, por orientação pretoriana, atos constritivos nas Execuções Fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa acabam por ficar paralisados. Como não é de praxe o Juízo da Recuperação Judicial exigir da recuperanda a prova do pagamento dos tributos devidos após o deferimento do pedido de processamento da Recuperação, cria-se uma espécie de salvo-conduto, para que a empresa em Recuperação deixe de pagar seus tributos, sem sem por isso incomodada pelo fisco.
Um segundo grupo identificado é o de empresas com débitos não tão antigos como os do primeiro grupo (inscrições com no máximo dez anos), mas também com débitos mais novos. Esse grupo tende, se não envidados esforços para a cobrança forçada dos débitos, a tornar-se parte do primeiro grupo.
Já o terceiro grupo é formado por empresas recuperandas com débitos inscritos de até cinco anos, e sem novos débitos. Isso pode indicar que a empresa consegue pagar os tributos correntes, analisando-se pelo lado bom. Porém, pelo lado mau, pode indicar, como efetivamente há casos, em que, embora formalmente a pessoa jurídica tenha ingressado com o pedido de Recuperação Judicial, houve de fato a cessação das atividades. Tal situação é muito séria, pois, com a dissolução de fato da sociedade, no curso do processo de Recuperação, o objetivo legal com o instituto fica totalmente desvirtuado.
Há casos, colhidos da experiência profissional dos Procuradores da Fazenda que atuam junto a empresas em Recuperação, em que a dissolução ocorreu mesmo antes do pedido de Recuperação Judicial, como forma de usar a Recuperação como escudo para impedir o fisco de continuar com as Execuções Fiscais, e constatar o encerramento de fato da pessoa jurídica. Também a experiência profissional mostra casos em que houve a cessação de atividade de uma empresa em recuperação, enquanto outra, pertencente ao mesmo grupo econômico, mas “omitida” na Recuperação Judicial, permaneceu em atividade, aproveitando-se, indiciariamente, da clientela amealhada pela empresa que estava em Recuperação, porém dissolvida. Aqui, a blindagem patrimonial visou proteger outra empresa do grupo, oferecendo-se a empresa em Recuperação como destinatária dos débitos, enquanto outra do grupo, em situação saudável, permaneceu com a atividade.
O quarto grupo é o de pessoas com inscrições em dívida ativa recentes, e todas concentradas num pequeno intervalo de tempo, como uma autuação fiscal vultosa que gera, numa única fiscalização, diversos autos de infração, que se tornam diversas inscrições em dívida ativa. Há um indicativo de que, se todas as inscrições são recentes, a Recuperação Judicial é utilizada com desvio de finalidade, posto que a “crise” que levou a empresa a solicitar a recuperação Judicial não advém a conjuntura do mercado, mas de um esquema ilícito de “planejamento tributário” descoberto pelo fisco. Tais empresas, indica-se, utilizam a Recuperação também com o objetivo não de se reerguer, mas de barrar a atuação fiscal, com o beneplácito de alguns julgadores.
Já se teve a oportunidade, por exemplo, de verificar uma Recuperação Judicial, em que os créditos quirografários totalizavam cerca de 52 milhões de Reais. Tal valor, alto em valores absolutos, parecia não fazer sentido, quando descobriu-se que o faturamento anual da empresa em Recuperação era de cerca de 38 milhões de Reais. Tal endividamento não parecia sufocar a atividade empresarial, nem o faturamento indicaria a existência de “crise”, pois não teria havido uma queda abrupta, relativamente ao faturamento de exercícios anteriores. O que parecia constringir a recuperanda era o passivo fiscal, que na época do pedido de Recuperação Judicial já ultrapassava meio bilhão de Reais.
Ora, se a sistemática da Lei de Recuperações Judiciais era a de propiciar aos credores e ao devedor uma chance de negociarem, a fim de evitar a falência do devedor, e assim a perda de um player no mercado, com efeitos negativos na concorrência, nos empregados, e também na arrecadação de tributos, faz pouco sentido que o principal credor da pessoa em recuperação seja o fisco. Isso porque o fisco não pode, ao menos que exista lei, abrir mão de parte do crédito, não pode conceder descontos, ou aumentar o prazo de pagamento, ou dar moratória. Também não há quem o possa representar na Assembleia de Credores.
Tal só faz sentido se houver, como há, uma intenção velada, em pedir a Recuperação Judicial com o objetivo maior de barrar a cobrança judicial dos créditos públicos.
Veja-se que são proporcionalmente muitos débitos, concentrados em poucas empresas em Recuperação Judicial, a grande maioria sem qualquer garantia ou qualquer modalidade de suspensão de exigibilidade, e distribuídos heterogeneamente em relação à data da inscrição, mas com uma concentração incomum de débitos nos períodos de maior complacência jurisprudencial com as pessoas jurídicas em Recuperação.
Não se desconhece que o instituto da Recuperação Judicial é norteado pelo princípio da preservação da empresa; desse modo, deve-se tentar o soerguimento da pessoa jurídica em crise, e o Judiciário tem sido o bastião protetor do princípio, a buscar incessantemente a manutenção da atividade produtiva.
Porém, analisando-se os dados colhidos, fica a dúvida: que tipo de empresas estamos tentando preservar? Se uma peticionária de Recuperação Judicial não consegue equacionar seu passivo fiscal, seria melhor deixá-la sem pagar os tributos, não exigir a CND/CPEN para homologar seu Plano, e suspender, de fato ou de direito, as Execuções Fiscais, o que os tribunais já têm feito pelas recuperandas Brasil afora, ou convolar desde logo a falência destas? Se uma pessoa dessas deixa de pagar os fisco, que dirá dos seus empregados? Será que a manutenção desse tipo de pessoa não é nociva ao mercado, pois concorre com outras empresas que pagam seus tributos?
Caso não solucionada essa questão, as Recuperações Judiciais continuarão a ser utilizadas como forma de blindar o patrimônio de pessoas com alto endividamento tributário, muitas vezes alto demais para viabilizar a continuidade da empresa, com o maior, e às vezes único, objetivo de furtar-se ao cumprimento das obrigações tributárias.