COMO FICAM AS RELAÇÕES CONTRATUAIS DIANTE DE UMA PANDEMIA SEM PRECEDENTES

Essa pergunta deve estar ecoando diante do caos social que se anuncia com a pandemia sem precedentes causada pelo COVID-19, para a contenção da qual medidas extremas têm sido adotadas, entre elas, talvez as de maiores impactos econômicos sejam o fechamento do comércio e a paralisação de significativa parcela das atividades empresariais no país e no mundo.

A resposta, no entanto, requer uma boa dose de cautela.

Se de um lado é preciso reavaliarmos as obrigações impostas pela relação contratual, cuja estabilidade passou a ser ameaçada por um fato extraordinário, de outro lado, criar um ambiente instável pode agravar ainda mais a situação.

Existem no direito alguns institutos, sobre os quais falaremos adiante, cuja aplicação têm como intuito, em linhas gerais, restabelecer o equilíbrio existente em qualquer relação contratual.

Não podemos iniciar a discussão a que nos propomos sem antes fazermos uma breve análise dos princípios em torno dos quais devem ser baseadas todas as relações contratuais, quais sejam, os princípios da sociabilidade, da eticidade e da operabilidade.

O princípio da sociabilidade impõe a harmonia entre os valores coletivos e os valores individuais, onde devem prevalecer os coletivos aos individuais.

O princípio da eticidade basicamente determina a aplicação da boa-fé e da função social do contrato, previstos nos artigos 421, caput e 422, respectivamente, do Código Civil.

E, por último, o princípio da operabilidade, cuja relevância merece especial destaque pela atual situação de calamidade imposta pela pandemia, uma vez que este princípio busca trazer maior fluidez às relações contratuais, é aquele que impõe soluções viáveis, operáveis e sem grandes dificuldades na aplicação do direito, destacando o aspecto funcional da relação contratual, de modo a torná-la dinâmica e solidária.

Feitas essas considerações iniciais, não é a pretensão exaurir nesse texto um tema tão complexo, mas convém trazer à luz alguns dos principais institutos jurídicos que podem ser aplicados de acordo com cada situação específica.

 

Com o intuito de facilitarmos a compreensão diante de uma questão cujos desdobramentos são totalmente desconhecidos, a melhor forma de iniciar a discussão é por meio de uma abordagem simples e didática. Senão vejamos.

A primeira situação a ser abordada é o descumprimento contratual decorrente de caso fortuito ou força maior. O que significa isso?

Sempre que um evento extraordinário, assim considerado como um fato imprevisível e inevitável, representar um impedimento real e definitivo ao cumprimento da obrigação assumida por uma das partes, estaremos diante de um caso fortuito ou de força maior, de modo que, nessa situação, via de regra, o devedor a quem cumpria a obrigação não responderá pelos prejuízos resultantes do descumprimento, desde que, não tenha expressamente por eles se responsabilizado, conforme disposto no artigo 393 do Código Civil. Daí a importância de uma análise pontual das cláusulas contratuais assumidas pelas partes.

E como ficam estas situações diante da pandemia causada pelo COVID-19?

Bom, precisamos primeiramente avaliar se o contrato em questão foi atingido pelos efeitos da pandemia de modo a inviabilizar o cumprimento da obrigação assumida. Lembrando que esse impedimento deve ser real, além, é claro, de guardar relação direta com o fato extraordinário, imprevisível e inevitável!

Se a inevitabilidade parece evidente no caso da pandemia, a imprevisibilidade, contudo, impõe uma verificação da cronologia da assunção obrigacional, uma vez que os contratos celebrados durante o surto da pandemia não estariam, via de regra, suscetíveis ao fator da imprevisibilidade.

Um segundo ponto sobre o qual devemos conduzir nossa análise é se o impedimento gerado é definitivo ou transitório, pois se a obrigação puder ser cumprida após o cessamento do fato extraordinário que impedia o seu cumprimento, a obrigação contratual deve ser apenas suspensa e o contrato preservado, uma vez que a legislação dá amplo amparo ao princípio da conservação dos contratos, especificamente, neste caso, representado pelo artigo 106 do Código Civil, por força do qual, “a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado”.

Feitas as considerações sobre a impossibilidade de cumprimento do contrato, não menos relevante é a preservação do equilíbrio nas relações contratuais de execução continuada ou diferida. Senão vejamos.

Nos contratos em que as partes assumem obrigações que se prolongam no tempo, “de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis poderá o devedor pedir a resolução do contrato”, nos termos do que dispõe o artigo 478 do Código Civil, é a chamada Teoria da Imprevisão ou da Onerosidade Excessiva.

Vamos ao caso prático. Tomemos por exemplo os contratos de aluguel não residencial, levando em consideração que o comércio está sofrendo um duro golpe com o chamado lockdown ou fechamento total durante o período de quarentena decretado por muitos governos.

Não sabemos quanto tempo durará e nem conseguimos ter a real dimensão dos efeitos negativos causados pelas medidas restritivas adotadas para a contenção da pandemia.

Partindo de um cenário no qual a eclosão de uma grande crise econômica, superveniente à celebração do contrato de aluguel, o torne excessivamente oneroso para uma das partes, seria possível rescindir este contrato sem incidência da multa ou rever o valor do aluguel?

Na hipótese de uma crise econômica comum talvez não estivesse presente a imprevisibilidade, uma vez que a jurisprudência tem manifestado entendimento no sentido de que o histórico de inflação, sucessivas mudanças no padrão monetário, maxidesvalorização do real, crises na bolsa e no mercado imobiliário, nada disso autoriza a aplicação da teoria da imprevisão, justamente por se tratarem de fatos que, embora sejam extraordinários, são previsíveis dentro do nosso contexto econômico.

E diante desta pandemia sem precedentes como ficam, por exemplo, os alugueres cujos valores se tornarem excessivamente onerosos para uma das partes? A resposta está na própria pergunta; se de um lado ainda não temos nenhum precedente jurisprudencial que nos autorize a tirar algum tipo de conclusão, de outro, a falta de precedentes históricos recentes de uma pandemia desta magnitude e com este potencial devastador à economia global, nos induz a concluir que se trata de um fato extraordinário e imprevisível, mas sem a confirmação da extensão temporal de tal fato (quanto tempo durará o lockdown ou até mesmo a crise?).

Não podemos deixar de pontuar que em nosso ordenamento jurídico, não obstante contemplar mecanismos que nos permitem rediscutir as cláusulas acordadas, em nome da segurança jurídica nas relações privadas, o princípio da conservação dos contratos impõe boa dose de parcimônia na quebra do vínculo, de modo que, nos termos do que dispõem os artigos 479 e 480, respectivamente, “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”, e, “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.

Assim, nesse momento, acompanhar o comportamento do mercado e os efeitos econômicos desta paralização global nos dará ainda mais subsídios para uma avaliação mais assertiva, de acordo, naturalmente, com as especificidades que cada caso contempla. Em relação ao caso concreto exposto acima, nos parece razoável e prudente a tomada de medidas progressivas, iniciando pela renegociação do contrato (prazo, valor, forma de pagamento…, caso aplicável), seguido da suspensão do contrato por prazo determinado ou indeterminado, e, por último, a rescisão em caráter definitivo.

Portanto, em se tratando de relativização de qualquer vínculo obrigacional, entendemos que a avaliação por um profissional do direito especializado em contratos é imprescindível antes de qualquer decisão, uma vez que todas as medidas adotadas individualmente de forma radicalizada podem gerar um ambiente de instabilidade, provocando uma reação em cadeia, donde é dado concluir que sempre o melhor caminho a ser trilhado é o da negociação.

 

Rafael Buzzo de Matos

Sócio do escritório BMM Advocacia Personalizada

e-mail: rafael.matos@bmmlaw.com.br

 

Rodrigo Rocha Nascimento

Advogado Consultivo do escritório BMM Advocacia Personalizada

e-mail: rodrigo.rocha@bmmlaw.com.br

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